Entrevista concedida ao jornalista Luciano Lima.

 

Pior do que um inimigo declarado é um falso amigo. Aquele que concorda com tudo o que você fala, anota todos os seus pontos fracos, até que chega um dia em que ele te apunhala pelas costas. A mesma lógica pode ser aplicada ao consumo de drogas lícitas, como o álcool e o tabaco. Por estarem dentro da legalidade, gerarem impostos e muitos empregos, os seus males passam despercebidos. Até o surgimento de uma doença crônica. No caso do tabaco, o cigarro é responsável por 90% dos casos de Câncer de Pulmão e em 15% dos fumantes causa Enfisema Pulmonar. Em entrevista ao jornal POVO do Rio, o médico pneumologista Alexandre Milagres, fala, além dos já conhecidos males do tabaco, do perfil psicológico do fumante e das políticas públicas de combate a este mal. Chefe do serviço de Pneumologia do Hospital Municipal Raphael de Paula Souza, em Curicica, onde coordena o programa de antitabagismo e de controle da tuberculose, ele é assistente estrangeiro da Universidade de Estrasburgo, na França, e responsável pelo site www.cigarro.med.br, de conteúdo bastante abrangente e direcionado a todas as idades.

 

Cresce número de viciados em cigarro

 

POVO do Rio: A indústria tem aumentado as substâncias nocivas que o cigarro produz ao longo dos anos?

Alexandre Milagres: São seis mil substâncias no processo. A que vicia é a nicotina. Você pode potencializar a ação da nicotina colocando amônia ou criando geneticamente uma semente de tabaco que tenha um teor de nicotina maior. Isso aconteceu no início da década de 90, no Rio Grande do Sul, onde sementes proibidas nos Estados Unidos foram plantadas. A chamada “YI”. Na época, o ministro da Saúde era o Adib Jatene. Estou estudando o caso de um processo judicial americano contra a indústria do cigarro. A maior causa jurídica americana foi essa contra a indústria do tabaco, que durou de setembro de 2004 até o ano passado. Uma das testemunhas ouvidas era um cara que foi contratado para manipular a molécula de nicotina e modificá-la com o objetivo de não fazer os vasos sangüíneos fecharem, ou seja, continuam gerando a dependência sem causar morte. Eles não querem salvar a vida de ninguém e sim manter as pessoas viciadas por mais tempo.

 

POVO do Rio: Qual o perfil do fumante que está chegando hoje?

Alexandre Milagres: O perfil não mudou nos últimos anos. Em 2000, a Organização Mundial da Saúde (OMS) começou a fazer um estudo sobre mortes violentas no mundo. Em 2003 publicou um relatório sobre essa pesquisa. Primeira causa de morte: acidente de trânsito – mais de 1.230 milhão de pessoas. Segunda causa de morte: suicídio. Se você somar guerra e assassinato, o suicídio dá um pouquinho menos. Vivemos numa sociedade em que as pessoas se matam objetivamente. A tendência para este século é a de haver uma epidemia de depressão, que as pessoas temem como a epidemia da obesidade. E, excetuando-se os analfabetos e analfabetos funcionais, você tem uma população que, apesar de receber a informação de que o cigarro é ruim, continua a fumar.

 

POVO do Rio: Isto em todas as classes sociais?

Alexandre Milagres: Na classe baixa, continua-se fumando muito. Porém, nas classes dos mais informados, você tem as mulheres entrando de cabeça. Elas estão preferindo correr o risco de largar daqui a 20 ou 30 anos e terem alguma doença ou não do que engordarem. Então, é o mito de que o cigarro emagrece, até porque o cigarro é o contrário do anabolizante, é catabólico, diminui o vaso sangüíneo e diminui a circulação de nutrientes em todos os tecidos.

 

POVO do Rio: Quais os tipos de pacientes que o senhor trata por causa do cigarro?

Alexandre Milagres: Existem dois tipos: dos pacientes com doenças variadas e doentes especificamente que querem tratar do tabagismo. Boa parte das doenças do pulmão tem a ver com o cigarro. Mas as principais são o câncer de pulmão e a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), que há cinco anos chamávamos de enfisema, que é para o resto da vida. Pouca gente conhece a DPOC, mesmo um médico não especialista, na hora de explicar, se enrola. É uma doença muito temida, irreversível. E as pessoas não sabem o impacto em termos de saúde pública. É a quarta causa de morte no mundo. O enfisema rompe os alvéolos pulmonares, que é onde o oxigênio entra no organismo e depois é passado para o sangue. Quando se rompem estes alvéolos, a pessoa inspira, mas esse oxigênio não é passado para o organismo. A pessoa morre por falta de ar. 15% dos fumantes têm DPOC. O segundo tipo que eu trato é o câncer de pulmão, principal a matar as pessoas no mundo. E 90% é fruto do cigarro.

 

POVO DO Rio: Tem como diferir, no aspecto psicológico, uma pessoa que vai começar a fumar, para um fumante de longa data?

Alexandre Milagres: Cada fumante é um fumante. O cigarro tem várias ações a nível cerebral. Pode ser anti-depressivo, ansiolítico – diminuir a ansiedade -, pode ser um ‘remédio’ para você ficar mais concentrado.

foto de Pedro Pantoja

 

 

POVO do rio: Tem ex-fumantes que dizem que eram mais rápidos no raciocínio.

Alexandre Milagres: Exatamente. Os grandes detetives da literatura (Sherlock Holmes, Inspetor Maigret, entre outros) fumavam cachimbo porque o cachimbo, como o charuto, contém 70 vezes mais nicotina do que o cigarro. Um charuto equivale a 70 cigarros. Tem pessoa que diz que fuma pouco, pois só fuma um charuto por dia. Fuma três maços e meio de cigarros e não sabe. O que faz com que sua concentração aumente também. Quando a pessoa pára de fumar, pode ficar depressiva. Se o cigarro era um remédio, pode ficar mais ansiosa. Se utilizava para diminuir a ansiedade e com relação a essa coisa da concentração, elas parecem mais aéreas. Uma professora minha voltou a fumar porque ela corrigia prova de alunos do ensino fundamental e não conseguia fazer as contas. É a dependência química. A nicotina, quando entra no cérebro, faz com que libere alguns neurotransmissores, como dopamina, serotonina e outros. Cada um deles tem uma função. Um aumenta a concentração, outro diminui o apetite, outro aumenta o foco das coisas, dá a sensação de alegria, bem-estar – dopamina - , a serotonina dá coragem para enfrentar os problemas. Quando se pára de fumar, você diminui todos esses neurotransmissores. Você pode ficar com medo, inseguro, triste, pode comer demais. Tudo porque esses neurotransmissores pararam de ser fabricados.

 

POVO do RIO: Quais os principais motivos das pessoas começarem a fumar?

Alexandre Milagres: Os dois principais motivos das pessoas começarem a fumar são a curiosidade e imitação. A curiosidade é porque o cara faz alguma coisa que desperta a atenção. E imitação em geral é porque você precisa que as pessoas que fumem tenham alguma ascendência sobre você. Se for uma pessoa que ele odeia, essa pessoa não vai querer fumar. Mas se é pai, mãe um irmão mais velho, um amigo ou namorado, eles já exercem um poder que faz com que você queira imitá-lo.

 

POVO DO RIO: O que falta para um combate mais efetivo ao fumo?

Alexandre Milagres: Falta isto ser incorporado como uma decisão de governo. Os dois países mais potentes em relação ao combate ao fumo hoje são os Estados Unidos e a Inglaterra. Clinton e Tony Blair assumiram a luta pessoalmente. Lembro de um discurso do Clinton  de mais de uma hora onde tinha no mesmo recinto o Partido Republicano e o Democrata. Foi a única vez que os dois o aplaudiram ao mesmo tempo. Isso é uma coisa que todos os políticos deveriam fazer aqui. Já participei de uma semana em que estava assistindo ao ministro da Saúde, lá no Instituto Nacional do Câncer (Inca), falar sobre o tabagismo. Dois dias depois, o ministro da Indústria e do Comércio, que era o Dornelles na época, estava entregando o prêmio Mauá para o cara da indústria do cigarro.

 

POVO do Rio: O senhor poderia comentar sobre os métodos para parar de fumar?

Alexandre Milagres: A OMS fez uma campanha com todos os ministros da Saúde do mundo, que levou uns quatro anos dando material para que eles, por sua vez, convencessem os ministros que lidam com o dinheiro que vale a pena investir. Então, em alguns países isso foi eficaz e em outros, nem tanto. No Brasil, já conseguimos que o governo esteja pagando parte do tratamento. A cidade do Rio de Janeiro já tem 33 locais onde o doente de tabagismo pode ser tratado com adesivo de nicotina, chiclete e está para chegar um antidepressivo. Mas o principal é tomar consciência de que fumar é uma roubada e se motivar. A atitude.

 

Povo DO RIO: Parece que as campanhas preventivas são como as do uso de preservativo, só se vê na mídia antes do carnaval.

Alexandre Milagres: É. As campanhas são sazonais. No dia 31 de maio, dia Mundial, e dia 29 de agosto, que é o Dia Nacional de Combate ao Fumo, é quando se vê algum movimento. E campanha não é só fazer cartaz. É todo um processo. Estamos falando de abandono do tabaco. Mas há muito tempo já se sabe que, para você controlar o tabagismo, você tem que parar a entrada de gente, e não é fácil. Nos EUA, entram hoje 3 mil adolescentes por dia, com toda campanha que eles já fazem formalmente desde 1967. E como é o perfil do adolescente? Invulnerável, que não tem medo de nada. Quanto mais perigo, mais ele quer fazer. E ele se acha poderoso e pensa: “quando eu quiser, eu paro”. E é a porta de entrada para outras drogas.

 

POVO do RIO: Por ser legalizado, o cigarro ainda não é visto totalmente como droga. Para alguns é uma espécie de amigo.

Alexandre Milagres: Muitas pessoas voltam a fumar por causa da solidão que sentem. Quando param de fumar, bate um sentimento de solidão. E vivemos num planeta onde a segunda causa de morte é o suicídio, imagine o astral que estamos vivendo. Não temos idéia de o quanto as pessoas são sós pelos mais diversos motivos. Muitas pessoas fumam por um quadro depressivo. Fumam inconscientemente por aquela história, “ah, mata, então vou fumar”. Então, não se deve falar muito que mata porque se pega uma gama de pessoas que são adeptas daquela frase: ”mata devagar, mas eu não estou com pressa”. Tem um outro grupo de pessoas que é ao contrário. São egos inflados, hipertrofia de egos,em que o sujeito diz assim: “ eu sou poderoso, comigo não vai fazer mal”. Tem pessoas que negam a possibilidade do mal do cigarro e não é um grupo pequeno. Então temos que trabalhar informando as pessoas dos males e tentando acordá-las que pode sim, dar um problema porque não acreditam. O adolescente acha que , com ele , nada vai acontecer. Por isso, é que, em termos de mortes violentas no trânsito, das pessoas pegarem AIDS, da gravidez precoce, é por pensarem: “comigo não vai acontecer”. É um pensamento mágico. Além do cigarro brasileiro ser  o sexto mais barato do mundo. Se formos levar em conta o que é contrabandeado, é o mais barato do mundo.

 

POVO DO RIO: Bem depois da constituição é que a propaganda de cigarros passou a ser proibida. Por quê?

Alexandre Milagres: Tive a sorte de ser médico da Comissão Arinos em 1987, que foi formada antes da Constituição de 1988, com vários sábios notórios, em Friburgo. Eles tinham a tarefa de formular um anteprojeto de Constituição para ser entregue no ano seguinte ao pessoal da Assembléia Nacional Constituinte. Primeiro, foi apresentada a proposta da proibição de anúncio de cigarro, de bebidas alcoólicas e remédios. O resultado da votação, ainda na Comissão, foi unânime em favor da proibição em qualquer tipo de mídia. Foi uma vitória para o movimento. No ano seguinte, já na Constituinte, nós soubemos que alguns deputados foram cooptados pelas indústrias e propuseram emendas que tinham o seguinte teor: “é válido que não tenha anúncio para nenhuma dessas três coisas. Porém, isso não é matéria de Constituição e sim de lei complementar”. A lei do cigarro levou 13 anos. Só em 2000 que se proibiu a propaganda de cigarro. Em compensação, a propaganda de remédio e bebida está galopando e, com esse absurdo que é o Zico (1 e 2) pedindo para 33 milhões de flamenguistas ajudarem o Flamengo comprando cerveja.