São Paulo, quinta-feira, 01 de junho de 2000

 

 

MANUELA MINNS
FREE-LANCER PARA A FOLHA

 

Nem médico escapa desta praga que vicia

 

No Brasil, 25% dos médicos fumam; para abandonar o vício, nem sempre basta ver o paciente morrer por causa do cigarro

 

Eduardo Knapp/Folha Imagem

Até quem mais entende de saúde pode ser dependente da nicotina



"Eu preciso ter algum medo para parar de fumar. Mas não pode ser medo de morrer, porque esse eu não tenho. Será que vai ser preciso ter uma pontinha de enfisema pulmonar para eu parar de fumar? Talvez"
Eda Zanetti Guertzenstein, 49 psiquiatra, fumante

"Quero largar o cigarro definitivamente também porque acho que não é legal para minha saúde. Além disso, fumar é incompatível com a imagem do médico que vende a idéia de saúde. Fica até contraditório"
José Antônio Borja Ribeiro Lima, 36 ortopedista, fumante esporádico

"Quando entrei na faculdade continuei fumando, sem maiores traumas. Isso só aconteceu mais para a frente, há dez anos"
Milton Roberto Lucchesi, 55 anestesiologista e administrador hospitalar, fumante

"Parei de fumar há 8 meses, porque me assustei. Já estava pensando nos males do cigarro, estava com 57 anos de idade -fumava desde os 17- e tinha um histórico familiar de problemas cardíacos. O primeiro mês foi o mais difícil. Sonhava todas as noites que estava fumando e acordava com vontade de fumar. É possível largar o cigarro, não tem mágica. A vontade tem que ser maior do que os sintomas da abstinência"
João Carlos Salvestrin, 57 clínico-geral, ex-tabagista

"Não acho que é incoerente ser médico e fumar. Acredito em campanhas educativas para conscientizar as pessoas dos riscos que elas estão correndo quando fumam. O papel do médico é ser um educador. Cabe a cada um escolher correr os riscos ou não"
Nelson Morrone, 65 pneumologista, ex-fumante (parou há 5 meses)

MANUELA MINNS
FREE-LANCER PARA A FOLHA

 

Eles conhecem mais do que ninguém a droga e como ela destrói o organismo. Por isso mesmo, era de esperar que não sucumbissem à ela. Mas a verdade é que nem médico escapa ao vício do cigarro.

 

Pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde na semana passada revelou um dado surpreendente: 25% dos médicos brasileiros são fumantes - prova de que a informação, inclusive o conhecimento científico, não é arma suficiente para derrotar o vício. Já no início da década de 90, estudo publicado no "British Medical Journal" revelava que 50% dos médicos fumantes morriam de males decorrentes do cigarro. Metade deles morria antes dos 65 anos e perdia em média 18 anos de vida. Os outros 25%, que morriam depois dos 65 anos de idade, perdiam em média 8 anos de vida em relação aos não-fumantes.

 

Estão adormecidos

 

"O tabagismo, assim como a malária, foi eleito prioridade pela OMS porque pode atingir qualquer pessoa. Mas isso não foi "introjetado" nos médicos como deveria, é como se eles estivessem adormecidos", diz Alexandre Milagres, pneumologista do Centro de Apoio ao Tabagista do Rio de Janeiro. E eles só "despertam" quando a própria vida entra em jogo -não basta presenciar a morte do paciente causada pelo cigarro. É o que mostram os depoimentos feitos à reportagem por médicos fumantes e ex-fumantes. "Eu achava que as tragédias nunca iriam acontecer comigo. O infarto foi uma surpresa", conta o pneumologista e ex-fumante Nelson Morrone.

 

Em nome da vida

 

Alexandre Milagres dá ainda uma explicação mais filosófica para a permanência do profissional de saúde no vício, assim como para as pessoas em geral. Refletir sobre a possibilidade de ficar doente e até morrer por causa do cigarro significa aceitar a própria vulnerabilidade, missão difícil de ser cumprida. Ela se realiza quando a doença já é uma ameaça concreta. Nesse caso, aceita-se abandonar um prazer, pois é em nome da vida, explica o médico.

 

Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, chefe do Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Droga, da Escola Paulista de Medicina), "o fumante se lembra justamente daqueles que não morreram cedo por causa do cigarro". De qualquer maneira, "há uma tendência de que eles fumem menos do que os não-médicos; o que eles aprendem na faculdade influi bastante no caminho de largar o vício", diz Montezuma Pimenta Ferreira, psiquiatra responsável pelo Ambulatório de Tabagismo do Hospital das Clínicas. Poder da informação Ou seja, apesar de não ser decisiva, a informação influencia na decisão de largar o cigarro. Mas o processo pode levar tempo, e com os médicos não é diferente. Apenas um em cada três fumantes consegue parar de fumar antes dos 60 anos de idade. E só 3% conseguem a façanha sem ajuda psicológica, de terapias alternativas, como ioga e acupuntura, ou de remédios.